Por Fernando Ferraz (poeta e escritor, membro da Academia Parnaibana de letras)
O filósofo e a velhice. – Não é bom deixar a noite julgar o dia: pois com frequência o cansaço torna-se juiz da força, do êxito e da boa vontade. Assim também é aconselhável extrema cautela em relação à idade e seu julgamento da vida, uma vez que a velhice, como a noite, ama disfarçar-se de uma nova e atraente moralidade e sabe humilhar o dia com os vermelhos do crepúsculo e o silêncio apaziguador ou nostálgico. (NIETZSCHE (1881)1No dia 23 de novembro de 2018 comemorei com minha família e alguns amigos meus 60 anos com um jantar em meu apartamento. Em seguida propus que nos déssemos as mãos e rezássemos juntos um Pai Nosso em agradecimento pela graça alcançada de poder ingressar na terceira idade. Idade em que passamos a ver o mundo de outra forma, priorizando o que nele tem significado e relevância.1 GIANNETTI, Eduardo. O Livro das Citações. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras. 2008, p. 169. 2 MORICONI, Ítalo (Organização, Introdução e Referências Bibliográficas). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva. 2017, p. 309.
Hoje, dia 23 de julho de 2020, o meu sogro, Dr. Edgar de Almeida Ataíde completa seus 100 anos de vida sem a presença física de todos os seus filhos, genros, noras, netos e bisneta, que se socorrerão da internet para com ele nos encontrarmos cantando os parabéns pra você.
Poderíamos perguntar para ele, que continua com uma excelente lucidez, qual o segredo de alcançar essa idade, só reservada a poucas pessoas. É possível que em resposta sua expressão facial diga mais do que suas breves palavras: ‘– não sei dizer!’! No dia em que completou seus 90 anos, foi filmado dando corda em seu relógio de parede, acrescido da sua observação: “quando parar de funcionar, já era!”
Ele alcança, assim, nesta data um estágio da vida em que Deus só reserva a poucos por mérito próprio, e por seu estilo próprio de vida adotado ao longo dos anos. Homem reservado, de poucas palavras, sobretudo para pessoas fora de seu círculo familiar, jamais cultivou vícios e nem se descuidou de sua boa alimentação. Muito menos perdeu suas horas preciosas de um sono diário reparador.
Era no mercado de Fátima onde mais se sentia à vontade, por estar em contato com os simples.Parece seguir os conselhos de Manoel de Barros: “para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber que o esplendor da manhã não se abre com faca”2 .
Mas, convenhamos, isso não é suficiente para se ter uma vida longeva. É necessário contar ao seu lado a companhia indispensável de um grande amor que lhe dê sentido à vida e que sempre ilumine as manhãs de seus dias.
E este amor, intenso, sempre presente, Edgar Ataíde encontrou em Maria do Socorro Freitas Ataíde. Mulher de fibra e de caráter e muitos méritos. Com ela teve seis filhos, além dos gêmeos que partiram pouco depois de nascer.
Foi nesta mulher que Edgar Ataíde encontrou forças e energia para seguir sempre em frente, enfrentando dificuldades e desafios ao proporcionar uma boa formação educacional a seus filhos, permitindo que todos tivessem um futuro promissor.
Mesmo com dificuldade financeira durante muito tempo, a casa deste casal também abrigou, por períodos, irmãos, cunhados e sobrinhos em momentos especiais da vida de cada um, lhes proporcionando o apoio emocional e o necessário incentivo de que então necessitavam.
Edgar e Socorro Ataíde sempre tiveram uma vida de doação, de desprendimento. Eles bem sabem o quanto tem sido importante o exemplo de vida como virtude que norteiam seus princípios, suas atitudes.
Filho dedicado do casal Arthur Athayde e D. Franca, Edgar Ataíde exerceu com muita dignidade e disciplina a chefia da SUDEPE em Parnaíba, antecessora do Ibama, com o raio de competência que incluía o litoral do Piauí e parte do litoral do Maranhão.
Foi professor de biologia da Escola Normal Francisco Correia, em Parnaíba. E por muitos anos dentista do INSS, onde se aposentou, ocasião em que sua chefia o homenageou com uma placa em reconhecimento por não ter faltado um dia sequer ao serviço público.
Comemorou em grande em grande estilo seus 80 anos e seus 90 anos com a presença de sua família e amigos. Hoje o registro de seu centenário, por conta do isolamento social imposto em decorrência da pandemia da COVID-19, nos impõe fazer uma comemoração virtual desta tão significativa data, em que todos nós agradecemos a Deus pelo presente de nos conceder a graça de continuar contando com a companhia e a sua presença em nossa vida. Particularmente muito tenho que contar e agradecer por esses longos anos de convivência com o Dr. Edgar, que se iniciou no mês de julho de 1978, quando comecei a namorar sua filha Claudia. Por essa razão, neste momento me vem à memória muitos de nossos momentos compartilhados juntos, como parceiros e amigos.
Como esquecer as pisadas apressadas de D. Socorro pela casa, quando às 7:30h da manhã ouvia o barulho dos dados no tabuleiro de gamão em que eu e o Dr. Edgar jogávamos?
Como esquecer nossos anos seguidos de passeios anuais de jipe a Tutóia em que parávamos no caminho para tomar banho na Cana Brava, no Barro Duro (no bar do Pedro pra tomar umas geladas), na Santa Rosa, onde tinha o prazer de ver as terras que pertenceram ao seu pai?! Sempre tinha a sensação de que ele, nessas ocasiões, rejuvenescia dez anos, tamanho era o seu entusiasmo e disposição de reencontrar esses lugares que sempre lhe traziam boas lembranças.
Em uma dessas viagens, demos carona na Cana Brava para dois rapazes. Um deles, se apresentou como Valdim. Ao chegar ao seu destino, Barro Duro, Valdim perguntou para o Dr. Edgar qual era o preço da corrida. Em resposta recebeu um sorriso acompanhado da afirmação de que “não é nada não”. Enquanto tomávamos nossa cerveja no bar do Pedro, já de saída com destino a Tutoia Velha, fomos abordados pelo Valdim que em agradecimento entregou para o Dr. Edgar uma dúzia de ovos de galinha acondicionados em um saco plástico transparente.
Só mesmo a paciência e os cuidados do Dr. Edgar para que aqueles ovos fossem para que aqueles ovos fossem por ele levados para dona Socorro, sem que nenhum deles tenha se quebrado nas estradas esburacadas que naquela época tínhamos que enfrentar para chegar a Tutóia, e as estradas de areia que nos levava do Comum a Tutóia Velha.
Pouco tempo depois, por conta do mestrado na PUC, eu, a Claudia e nossa filha Camila residimos por três anos em São Paulo, de 1986 a 1989. Pois durante todo esse tempo, sempre que o Dr. Edgar me escrevia ou falava comigo ao telefone, me dizia que o delicado Valdim me mandava lembranças. O que sempre nos fazia lembrar, sorrindo, que ele, o Dr. Edgar Ataíde, era quem tinha cuidado bem dos ovos do Valdim.
Naqueles inesquecíveis passeios que por anos seguidos realizamos, eu e ele, ao Maranhão, quase sempre pernoitávamos na Tutóia Velha, hospedados na casa do Raimundo e da Lelé, que ficava entre as casas da parenta Zizi Athayde e a casa Três Corações, da D. Honorina Canavieira. No início das manhãs antes de retornarmos a Parnaíba, Dr. Edgar ia ao cemitério ver o estado em que se encontravam as sepulturas de seus ancestrais e já providenciava para que fossem recuperadas e pintadas.
Em outra ocasião, a Claudia foi chamada pelo Dr. Edgar Veras, diretor da Maternidade Marques Basto, onde ela trabalhava como médica, que ele havia recebido uma ligação de Belo Horizonte de um senhor querendo falar com ele, apresentando-se como colega da faculdade de odontologia. Deixou o contato telefônico.
Quando a Claudia falou com o Dr. Edgar Ataíde sobre esse contato telefônico, ele já foi dizendo que se tratava de um colega dele de faculdade que devia estar organizando uma comemoração de cinquenta anos de formatura. Acertou na mosca!
Aí chegou o meu momento de lhe dizer que ele e d. Socorro iriam, sim, para essa comemoração. E que eu e a Claudia os acompanharíamos para prestigiá-lo. Foi quando então nossa filha Camila, ainda criança, fez a pergunta: – e eu? Atento, o Dr. Edgar lhe disse que ela também iria e que ele pagaria suas passagens.
Quem acabou também indo conosco a Belo Horizonte foi o Edgar Jr. e a Sandra, que receberam de presente de casamento as passagens aéreas do Dr. Edgar e d. Socorro.
Naquele almoço festivo, numa manhã de sábado em restaurante na lagoa da Pampulha, no emocionante reencontro de colegas da faculdade de odontologia, o dr. Edgar Ataíde, que de todos os presentes era o que mais longe morava de Belo Horizonte, era o mais prestigiado por sua família, o que causou admiração a todos os presentes. Inesquecível aquele passeio a Belo Horizonte. Ocasião em que fomos conhecer Ouro Preto, antes de retornar para Parnaíba.
Depois que comemorou seus 90 anos, com a presença expressiva de familiares e amigos em um buffet de Parnaíba, fez questão de promover um jantar, no dia anterior, em sua casa, com a presença de seus filhos, netos, genros e noras. Na ocasião expressou a importância de cada um deles em sua vida, além de enaltecer as qualidades de D. Socorro.
Pouco tempo depois, sofreu um AVC que limitou seus passos, mas não comprometeu seus movimentos, sua fala e sua lucidez que continua excelente. Recentemente ele prestou valorosas informações que muito enriqueceram o livro de minha autoria: ALICERCE – História de Edméa e Ferraz Filho, lançado em 2018. Graças ao seu depoimento, foi resgatada a história da criação da Gráfica Renascença, por seu cunhado Zequinha Nunes, e que depois se transformou em Gráfica Americana.
Comemora hoje seu centenário com todos nós que lhe queremos bem e que temos nele uma referência de virtude, honradez, honestidade, paciência, resignação e confiança nos bons propósitos que Deus nos tem reservado. Seu testemunho de vida e seus sábios conselhos continuam a nortear nossa vida. Muito obrigado, meu Deus, pela graça de continuar contando com a presença do Dr. Edgar Ataíde em nossa vida! Parabéns, estimado Dr. Edgar!
Grande abraço, com a minha admiração de sempre.
NOTAS: 1 GIANNETTI, Eduardo. O Livro das Citações. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras. 2008, p. 169. 2 MORICONI, Ítalo (Organização, Introdução e Referências Bibliográficas). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva. 2017, p. 309.