Crônica de Pádua Santos*
“Volta com um baú carregado com peças d’ouro, que lhe
rouba um administrador, antigo frade capuchinho”.
(Eça de Queirós – A Ilustre Casa de Ramires)
Sobre o coronel Petro Madiche de Medeiros – respeitado comerciante, grande empreendedor no ramo varejista, atividade que exercia concomitantemente com a pecuária desenvolvida em mais de uma fazenda de sua propriedade – conta-se o seguinte fato tido como pitoresco para não se dizer deprimente.
Foi aquele inteligente cidadão, durante toda sua longa vida de trabalho e de boa prosa, a despeito do forte ranço do período colonial brasileiro embutido em sua patente comprada, um casto aparente. Sim, apenas aparente. Na verdade, o que se sabe através de relatos de alguns poucos que, vivendo muito, puderam privar de alguma de suas muitas aventuras amorosas, é que ele foi, a vida toda, um daqueles que sempre comungou com o ensinamento freudiano de que em tudo predomina o instinto sexual.
Conta-se mesmo que ele, de tanto admirar e de tanto ler as descobertas, as teorias e os conselhos de Freud, mantinha na parede, ao lado de sua mesa de trabalho, em uma moldura, a seguinte máxima da lavra do famoso neurologista austríaco: A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, já vivi muitos anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol…
Todavia, quando para ele avizinhou-se o último pôr do sol; quando as suas pernas perderam as forças para conduzir o seu cansado corpo ao interior do confortável veículo que sempre lhe transportava de casa ao seu escritório localizado no centro histórico da cidade, e vice-versa; quando a grande maioria dos seus amigos deixou de buscar os seus sábios conselhos de viúvo experiente; ele sentiu, atormentado, que o seu viço desaparecia para sempre, tal e qual desapareceu o lucro que um dia teve com a cera da carnaúba. Daí para frente foi somente ficar em casa, deitado e calado, remoendo o passado, esperando a hora da partida.
Nada mais conversava; nada mais queria porque nada mais lhe agradava. Apenas um pedido, um último e talvez irreverente, porém indispensável pedido: queria uma fêmea. Pediu aos filhos em um dia em que todos velavam ao lado do seu leito: queria uma mulher, fosse quem fosse. Que lhe trouxessem uma mulher!
– Ainda sou homem!
Dizia com ênfase, batendo no amolecido, mas ainda largo peito brasileiro.
– Estou com esta idade, mas não me troco por certos jovens de hoje. Fui criado bebendo leite mugido com mel de abelha!… E sempre concluía afirmando com toda a força que ainda saía do seu velho pulmão nonagenário:
– Ainda sou macho!…
No mesmo dia os filhos se reuniram em assembleia domiciliar, debateram muito e concluíram afinal que quem consegue viver quase um século tem o sagrado direito de pelo menos mais um minuto de felicidade e de orgia, e decidiram por unanimidade: no início da noite seguinte, sem muito esforço e com módico pagamento, trariam uma puta capaz de satisfazer o último desejo daquele ente moribundo que demonstrou bastante ansiedade ao ser comunicado da decisão.
A contratação da vadia não seria difícil porque entre a casa do ancião e o cabaré mais famoso da cidade havia apenas duas ruas, sem movimento e praticamente escuras à boca da noite.
Mas ocorreu que uma de suas noras, pensando e agindo de outro modo e sem saber da determinação dos filhos, marcou para a mesma noite a vinda de um frade capuchinho que em nome dos sete sacramentos da Igreja Católica traria, ao enfermo e em nome de Deus, a sagrada extrema-unção.
Como os padres são sempre apressados quando se encontram no exercício de missões desta natureza, chegou o capuchinho antes da meliante contratada e foi logo entrando no quarto que teve a sua porta fechada pela nora religiosa.
Ali dentro, sentado em uma cadeira ao lado da cama, o religioso melava os dedos em óleo enquanto debulhava uma triste e comovente oração. O velho coronel, não tendo mais forças para bem distinguir as pessoas, não percebia que aquele piedoso presbítero, com aquela reza, roubava-lhe o seu tesouro – sua última tentação perniciosa que ainda latejava em sua mente – Mas permitia, calado e esperançoso. Cícero já explicou isto: Não há ancião que esqueça onde escondeu seu tesouro. De modo que consentia, embora bastante resignado e apressado, triste resmungo de baixo tom, porque podia se manter acreditado piamente naquilo que sua imaginação permitia acreditar, e assim, passando a trêmula mão na macia e espessa barba daquele ministro de Cristo, dizia quase sem voz:
– Ótimo, meu bem. Você é uma beleza! Já veio pronta…
*Antonio de Pádua Ribeiro dos Santos, poeta, escritor, cronista, contista, ocupa da cadeira de nº 01.