O poeta e um dos fundadores da Bossa Nova, o carioca-brasileiro Vinicius de Moraes, imortalizou o De repente, não mais que de repente. Esse verso decassílabo, do antitético poema Soneto de separação, demonstra o quão é espantosa a passagem das coisas (no caso, em específico, da separação entre um casal, que, de repente, como em um espanto, perdeu o amor) no tempo. Debaixo do sol, tudo está sujeito a transitar em um sonoro de repente, não mais que de repente.
Em Diego Mendes Sousa, em uma fração do espanto, já se vão vinte anos de realização de uma das mais significativas e sedutoras produções poéticas da Literatura Brasileira contemporânea.
Quem o conhece pessoalmente, sabe do espírito gentil e ousado que o jovem poeta detém.
Quando ele se descobriu para a literatura, a partir do espanto causado pelo romance A casa da paixão (1972), de Nélida Piñon, in memoriam, ele encarou os desafios, dia após dia, para se incorporar de um modo mui digno e ousado entre os grandes nomes da poesia nacional e estrangeira. E essa intrepidez, de se introduzir fervendo no meio da quentura, é própria de quem é nocauteador.
Clarice Lispector expressou: Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Vendo assim, parece que ser poeta é, antes de tudo, como Diego Mendes Sousa mesmo verseja, ser um viajante sem batismo, isto é, não ficar atrelado a qualquer religião. Comer de tudo. Gozar de tudo. Nocautear o ego. Arranhar a alma.
Vendo sua trajetória poética, parece que grande é o poeta que se arvora nos temas abismais espalhados nos meandros dos desassossegos e das calmarias humanas.
Mas não; não pretendo fazer um panorama dos vinte anos da produção de Diego Mendes Sousa. Temo não ser capaz de tanto. Porém, com devida modéstia, quero demonstrar a impressão que tive ao ler o seu último livro: Agulha de coser o espanto. A meu ver, é uma das suas mais brilhantes obras pelo quadro imagético, conceitual e filosófico apresentados.
O título do livro é uma gigante costura metafórica: uma agulha capaz de coser/alinhar o espanto de viver do (e no) ridículo, do (e no) tempo e do (e no) amor. Além do mais, o verbo “coser” (ato de juntar com pontos com agulha e com linha) traz, a bem da leitura poética, a possibilidade de captarmos a presença de uma composição por aglutinação a partir da junção da preposição “com” (“junto, acompanhado de”) com o substantivo “ser”, o que nos fornece a ideia de que o trato da agulha poética é um serviço coletivo, plural e multiativo, em que a poesia só se realiza dentro da interação sinérgica e contínua que há entre o poeta e o leitor.
Vale destacar que o livro tem a augusta apresentação de Nélida Piñon, um dos mais referenciados nomes da literatura nacional contemporânea e imortal da Academia Brasileira de Letras.
Agulha de coser o espanto está dividido em três seções:
- a primeira parte é a Agulha de coser o ridículo.
Nesse campo é apresentado/revelado que a poesia é a agulha; é ela que fura e pontilha o tecido, retalho das coisas, dos sentimentos, dos homens, das dores e da fé.
O poema é o pomo
do sangramento humano,
um testemunho da vivência,
com segredos, e sobretudo,
com revelações.
E não só isso, também se evidencia que o poeta é o modista risível, o costureiro que, com a agulha alinhada e linha certa, sai tecendo vestimentas com as quais se adorna a humanidade.
O poeta
é aquele
ser risível
que opera,
pensa, sente
sangra
e galopa
insano.
Esse ponto da obra é crucial para se entender a proposta do que vem a ser “coser o espanto”. A poesia cirze o assombro a partir de quem a usa com estilo e inteligência, o poeta, o tecelão de modas e das transformações.
Deus,
o oleiro
que tece à mão
a terra perdida.
- b) em um segundo momento, tem-se a Agulha de coser o tempo.
Essa agulha é a mais filosófica, também a que mais aproxima o poeta da eternidade devido a sua urdidura existencial que incomoda e afronta. Ela é capaz de fornecer a costura permanente de reminiscências.
O tempo
é arco-da-velha
que às turras
arrasta o presente
para confins
memoráveis.
Para quem não está familiarizado, o arco-da-velha se refere ao arco-íris surgido no livro de Gênesis, na Velha Aliança, quando Deus, a partir do dilúvio, destruiu o mundo antigo. O arco-íris foi, portanto, um sinal celeste glorioso da promessa divina aos homens. Diego Mendes Sousa costura essa alegoria de um modo genial, apontando que o tempo, a “vítima” da agulha, é essa imagem colorida e esplêndida que, com pancadas, arrasta o presente para o passado, fornecendo uma saudade cativante, memorialista e chorosa, por vezes.
Dentro desse quadro feérico, o tempo é tudo, só não é vilão. Ele é uma espécie de causa necessária que deixa aos olhos humanos uma marca hermética, a saudade. E ela é um dos mais fortes sentimentos a que o homem é obrigado a se submeter, já que a separação, a distância, os desencontros são sinais caímicos herdados por todos os filhos de Adão.
O tempo arrulha
uma saudade
mergulhada
na claridade
do presente
E ainda
Ficou por certo
polegada a polegada
a perenidade
da saudade.
Esse movimento temporal também cirze a filosofia. Envelheci a alma a caminho do tempo, é o que Diego diz. A mobilidade que o poeta lança sobre a sua existência faz dele um costureiro de seu próprio destino e aprendizagens; ele não é, definitivamente, um ser paciente e, portanto, inerte ao querer aventureiro do ocaso.
Para Diego Mendes Sousa, o poeta das agulhas, coser o tempo é a máxima expressão de não envelhecer com as dores peculiares da idade. É como se, enquanto poeta, pudesse andar pelo estômago do tempo e livrar-se de seus nefastos efeitos. E esse é o poder de sua agulha. É essa a sua Poesia. Uma forma divina de construir e destruir. De sondar e de dar mistério. De andar pelas retas e pelas sinuosidades. De ser Gênesis. De ser Êxodo. De ser Apocalipse. De ser. De coser. Sim, o poeta das agulhas subjuga o tempo e cirze a saudade, ponteando o horizonte com a linha certeira de suas vivências e memórias.
(…) a agulha
de coser
o tempo
como uma múmia
que ponteia o horizonte
da dor pura,
fugidia
que atravessa
a vida…
- c) na última seção, evidencia-se a Agulha de coser o amor.
Quem acompanha o poeta Diego Mendes Sousa sabe que uma de suas mais brilhantes tessituras se dá no ato de coser o amor. O amor à Altair. À estrela Altair. À Susana de sua poesia. Aliás, o poeta das agulhas tem um livro especial dedicado à sua maior inspiração: O viajor de Altaíba (2019). Aqui, em Agulha de coser o espanto, ele, novamente, não poderia deixar de fora a urdidura que o lança para experimentar o prazer do amor. Outra vez, ele se mostra um vagueante a depender da felicidade que está nos olhos de sua amada:
Vago como um peregrino
na clarividência
do seu olhar
verde, verde
de mar.
Essa agulha, que cose o amor de sua Musa, também cirze o amor à geografia de sua terra, a sua Parnaíba: Tenho o coração cravado nas minhas raízes e
Minhas mãos carregam
o sal cristalino das ondas
do mar do Piauí
Parnaíba é o amor geográfico. O amor do cheiro das águas. O amor citadino em que pendula marcando as horas em seu coração.
Ah, Parnaíba
a casa,
o centro a terra
o mar o rio
o rosto do mundo
Finalizo estas impressões destacando que o poeta das agulhas não deixa de clarificar o quanto importa ao seu coração o amor que consigo carrega. O amor da procura, da insaciável busca de se encontrar fora de si, quando se busca no “trem da história” ou em si mesmo, nos seus “vagões da memória”.
Em Diego Mendes Sousa, o ridículo, o tempo e o amor são facetas comungáveis a todos os homens e, portanto, suas imagens, versos, ritmos e costuras não são faces da poesia de uma região tão somente. Eles têm a grandeza dos gênios e o caráter universal, o que é próprio dos grandes nomes da Poesia, como foi o seu tio-avô, Ferreira Gullar, um dos mais importantes poetas brasileiros, por exemplo.
Em Agulha de coser o espanto, Diego Mendes Sousa, o poeta das agulhas, alinha os fatos, os feitos, as esperanças, o ridículo, o espanto das coisas, o espanto dos homens e o espanto da vida em uma colcha arco-lírica e poética de fazer assombro.
*Josiel Barros – Professor de Literatura, Bacharel em Direito e Poeta.