Conto, escrito por Pádua Marques
Madrinha Gesuína havia mandado Tina limpar o pátio onde estavam no chão alguns
muitos sapotis e carambolas apodrecendo e levantando mosquitos. Aquilo, aquela
sujeira sem fim só haveria de chamar a atenção de meninos moleques de rua, homens
que trabalhavam no porto, nas oficinas, nas fábricas de pilar arroz e a gente pobre dos
Tucuns, os pedidores de esmolas que ficavam até tentando com a ajuda de um pedaço
de pau ou outro meio a retirar essas frutas pelos vãos das grades.
Gesuína de Sales, a mulher mais rica da rua Vera Cruz em Parnaíba, viúva do capitão de
navios Joaquim de Sales, o comandante Quincas de Sales, mandava, se preciso fosse,
até soltar os três cachorros pra assustar aqueles invasores. E além da sujeira daquelas
frutas podres levantando mosquitos, poderiam causar um dano no automóvel que fazia
anos estava guardado, um Ford V8 Window Coupe. Depois que o marido morreu ela
não quis mais saber de mandar vender ou contratar um chofer pra, pelo menos levar ela
e Tina na missa, na igreja de Nossa Senhora da Graça.
A Parnaíba estava ficando grande e rica demais naquela guerra na Europa em 1941 e
muitos parnaibanos que viviam nos Estados Unidos passaram a ficar preocupados e a
causar preocupação. Mas dona Gesuína não era de largar o pé do telefone e do rádio,
este último uma coisa nova, com a novidade da Rádio Educadora. Aqueles dois luxos
eram ainda sua ligação com o que foi no passado, quando casou em Amarante, sua terra,
com o jovem e entusiasmado capitão Joaquim de Sales e que lhe trouxe em seguida pra
terra dos Moraes Correia.
Ela e Quincas de Sales nunca tiveram filhos. Fora o casal na casa apalacetada da Vera
Cruz, vivia a negra Vicentina, a Tina, vinda com ela de Amarante desde o primeiro dia
pra debaixo do teto do capitão. Ele, homem de grande fortuna, era mão fechada a ponto
de, já doente recusar pagar passagem e tratamento em São Luiz no Maranhão e andar
uma semana inteira vestido com um pijama. Fedia de longe. Quando a sujeira dava na
vista de um lado, ele virava pelo avesso.
Deixou pra ela muito dinheiro, o palacete com boa mobília, quadros, vasos de
porcelana, prataria e o automóvel, um carro muito bonito, preto, elegante e que chamava
a atenção de todo mundo na Parnaíba. Comprado com a ajuda de gente de dentro da
alfândega. Há um pouco tempo Gesuína comprou nos Marc Jacob uma geladeira, peça
muito bonita e que funcionava a querosene.
Mas foram poucos os vizinhos que puderam ver. Da mesma forma foi quando ainda
vivo, o capitão Quincas de Sales mandou instalar o telefone. Nada de estranhos dentro
de casa, pedindo água gelada ou pra que Tina guardasse carne ou peixes. A luz elétrica
dentro de casa era mandada ligar tão logo era difícil enxergar alguma coisa no escuro e
tão logo ela Gesuína se recolhia pra seu quarto, a afilhada e criada vinha e apagava tudo
e ia também dormir.
Gesuína custou a se acostumar com a luz elétrica e com o telefone. Mas só ela podia
atender as raras ligações quando o aparelho tocava. Nos últimos anos dona Gesuína de
Sales vivia dizendo pra uns poucos que ainda passavam por sua sala na Vera Cruz, que
tinha dinheiro e se quisesse e ela estivesse à venda, podia comprar a Parnaíba inteirinha!
Sales, seu marido, nunca foi de querer comprar terras. Esse negócio de léguas e mais
léguas de carnaubais na Ilha Grande de Santa Isabel e na beira do rio Parnaíba, até a
Barra do Longá, era fortuna enterrada!
Mas o capitão Joaquim de Sales, o Quincas de Sales, sendo rico e conhecido pelo
silêncio que cobriu a sua e a vida da mulher Gesuína, era de guardar raiva de gente
como a que alimentava pelo poeta Alarico da Cunha. Se bem que o jornalista nunca lhe
tenha dirigido uma única vez a palavra e pouco tenha visto Sales em público, ali pela
mercearia do seu Bembém, na rua Duque de Caxias e noutros lugares, no Cine Éden, na
praça, nas casas comerciais dos Veras, pela Casa Inglesa e nos estabelecimentos dos
Jacob.
Quincas de Sales tinha uma cisma porque o poeta era espírita. Dentro de casa xingava
Alarico da Cunha de tudo quanto era nome feio. Gesuína ficava calada e até se retirava
da sala. O capitão também não gostava de sair com a mulher pra ir à igreja. Detestava os
padres, as imagens, as procissões, as novenas, as confissões e muito menos alguém vir
pedir que fosse padrinho de seu filho. Mas a mulher, de birra, mandou fazer um banco
com o nome deles, “Capitão Joaquim de Sales e Gesuína de Sales”.
Quando ele morreu, passados mais uns anos, Gesuína também já não gozando de saúde
e de paciência e vendo seus dias se consumindo, igual às velas de cera ainda acesas nos
altares de Nossa Senhora das Graças, mandou tirar o banco da igreja. O carro de pouco
uso, luxuoso, lustrado, possante e o banco da igreja com o nome deles, passaram a ser
vizinhos de esquecimento e entulho entre as carambolas e os sapotis podres no jardim
da rica e sombria rua Vera Cruz, na antes barulhenta e rica Parnaíba.