Aqueles que têm mais de cinquenta anos, já passaram da Volta da Jurema, hão de se lembrar como era esperada a Semana Santa. Semana Santa era jeito de falar porque assim como naquele tempo, até hoje é um dia só do ano, a Sexta-feira da Paixão, que os cristãos celebram a paixão e morte de Jesus Cristo. Mas era data esperada o ano inteiro.
Fora as celebrações, era dia de grande espera porque naquele dia era dia de se trocar comida, verduras e legumes fresquinhos, milho, feijão verde, melancia, quiabo, maxixe e pra completar, os bolos de milho verde, de macaxeira, puba fresca pra mingau, tapiocas, beijus feitos em casa de farinha e trazidos pras feiras e mercados, apinhados de gente do interior e da cidade.
E ninguém era besta de falar em comer carne, fosse de gado ou de porco, galinha, pato, capote. As velhas de casa diziam que era pecado por causa da paixão de Jesus Cristo. E tinha outra curiosidade dos meninos nesse dia tão especial, porque logo após vinha o Sábado de Aleluia. Aí tinha a morte do pato, que vinha logo a queima do Judas. Toda ou quase toda esquina tinha um. Levava o nome de algum político ou de gente que tinha feito o que não devia.
Os meninos aguardavam a vez de saírem de porta em porta nas casas dos vizinhos e parentes deixando estes alimentos e aguardando a vez da dona de casa retribuir com alguma coisa igual. Esta era uma festa muito bonita e que deixava a todos os meninos do nosso tempo prontos pra andarem fazendo esta penitência boa e alegre. Em tudo que era casa havia uma alegria tamanha pela chegada da Sexta-feira da Paixão.
As cidades eram menores, a população era menor, havia uma amizade entre as pessoas, velhos, gente grande e meninos. Tudo era festa. A gente passava o dia inteiro percorrendo a vizinhança deixando frutas, verduras e legumes e trazendo na mesma pisada, ovos, melancia, tapioca, beijus vindos do Marruás, do Bom Princípio e do Cocal, lugares conhecidos pela fartura da mesa.
E os meninos saíam puxando seus carros de lata, de baladeira no cós do calção, empurrando a roda tocada pelo arame, chutando uma bola de meia e aquilo era uma festa e tanto. E dentro de casa aquele entra e sai de bandejas cheias de alimentos frescos, que haviam de encher as despensas por vários dias.
A celebração dos adultos, pras velhas e as senhoras, era mais reservada. Havia quem passasse o dia inteiro de jejum, rezando em penitência. Havia a crença entre os mais chegados nos anos de que era pecado, proibido falar alto, contar piadas, falar nome feio, xingar e até havia quem não pegasse em dinheiro e não tomasse banho.
Era um dia alegre para os meninos e mais triste para a gente grande. E o almoço, todos da família em silêncio na mesa, os meninos obrigados a colocarem camisas. Porque havia, fora da celebração cristã, o respeito pela morte de Jesus Cristo. Daquele dia a gente tinha uma reverência de compaixão, até de medo pelos castigos de Deus pra com os pecadores.
Porque a gente sabia que Jesus Cristo morreu pra nos salvar do fogo do inferno. Mas os meninos e a gente grande tinham certeza que seria a partir daquele dia um ano de fartura na mesa dos homens. E a Sexta-feira da Paixão era comum muita chuva, como se a natureza anunciasse que aquela chuva era um aviso divino pra que os homens guardassem os mandamentos.
Depois o mundo se encheu de pecados trazidos pela tecnologia, os meios de comunicação e tudo o mais. Os meninos deixaram de brincar na chuva porque fazia mal, trazia gripe e resfriados. Os meninos deixaram de acreditar nas Escrituras, deixaram a rua e ganharam a solidão dos apartamentos.
As famílias deixaram de trocar os jejuns fartos com suas bandejas de coisa boa. Já não existe mais o trem vindo do Bom Princípio e de Cocal. O mundo ficou mais egoísta e os homens ficaram mais tristes e silenciosos.
*Pádua Marques, escritor, da Academia Parnaibana de Letras, do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba. Foto de Valmir Pereira/IPHAN.