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Dia desses eu vindo do centro enxerguei pela janela da van um humilde urubu no meio do passeio na avenida Pinheiro Machado, naquela região do mercado municipal onde a sujeira é marca registrada e dá no meio da canela. Era hora de quase o meio do dia, sol a pino, um calor dos infernos umas duas léguas. E eu cá comigo fiquei a imaginar como deve ser difícil a vida dessas aves tão injustamente discriminadas pelos homens, mas que são assim tipo os lixeiros da SN Ambiental.
Sim, iguais nas funções aos homens da SN Ambiental, aqueles trabalhadores que estão todos os dias correndo atrás do caminhão e que por dever de serviços são obrigados a meterem a mão em tudo que é tipo de lixo, seja da casa de ricos da Nova Parnaíba e do São Judas Tadeu, dos remediados do Dirceu e até dos pobres lá no João XXII, Dunas, Alto de Santa Maria e do Brodervile. Os urubus são os lixeiros da natureza. Pegam no pior que existe, a carcaça podre de animais, inclusive de gente quando morre no meio do mato.
Aquele urubu estava no meio da avenida passando por um mal momento. Um calor dos infernos, meio-dia, uma avenida barulhenta com carros nos dois sentidos, pessoas caminhando no rumo de casa, os estudantes voltando da escola, os vendedores das lojas de um real se esgoelando pra oferecer aqueles produtos chineses, aquelas vasilhas de plástico.
E o urubu ali na Pinheiro Machado com Doutor João Silva Filho, olhando pra um lado e pra outro tentando atravessar a avenida, talvez pra procurar um abrigo mais fresco ou encontrar algum camarada pra tirar uma conversa, tomar uma cerveja ou um caldo ou fumar um cigarro.
E o urubu vinha de dentro do mercado, daquela região onde os vendedores de carnes jogam no chão, por desleixo e falta de cuidados da prefeitura toda sorte de cabeças de bois, couros e tripas. Vinha lá de dentro de papo cheio, lambendo o bico e olhando pra os lados em sinal de que naquela manhã a feira tinha sido boa. Mas ao alcançar a avenida a coisa andava ruim, tudo por causa do calor.
Ninguém queira saber o que é um animal, uma ave, que mete medo, repulsa mesmo em todo mundo, ser enxotado por onde passa, na base da pedrada e tiro de chumbinho, xingado de tudo que é nome feio e ainda por cima viver até quando Deus quiser, vestido com aquela roupa preta, assim feito os ministros do Supremo Tribunal Federal ou os juízes quando presidem um julgamento.
Dá pra ter é pena de urubu, passar a vida inteira sendo enjeitado, coberto de pragas, as pessoas se afastando quando o encontram catando alguma coisa de comida num camburão de lixo no mercado, acusado de ser ave de mal agouro, correndo o risco de morrer a qualquer momento porque ninguém vai com sua cara.
No fundo os urubus não fazem mal a ninguém, são boa gente. Não incomodam ninguém. Entram e saem dos lugares públicos sem dar uma palavra. E ninguém nunca viu eles andarem com alguém da família, assim como os filhos, assim como fazem os homens nos shoppings na época do Natal ou nos finais de semana comendo hambúrger, bebendo refrigerante e olhando vitrines.
Dizem as pessoas metidas a civilizadas, essas que ganham um salário mínimo e se acham ricas a ponto de acharem que pagam impostos e por isso têm certos privilégios, que os urubus são feios, com aquela cabeça cheia de mondrongos, o andar igual a quem é cambota e portanto devem reconhecer seus lugares. Mas a vida é assim mesmo. Cada um é do jeito que é e faz seu serviço como pode.
*Pádua Marques, jornalista, cronista, contista e romancista, da Academia Parnaibana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba.